Caminhando por Hiroshima, um roteiro histórico da cidade fluvial

Hiroshima Bossa Open Café. Um evento para desfrutar de bossa nova e churrasco, de bate-papo, tomando um bom cafezinho, será realizado no dia 3 de outubro na área do talude ambiental de Motomachi, ao leito do rio Ota que percorre o delta de Hiroshima. Prévio a este novo evento, organizado por voluntários que dão vida à cidade fluvial, convido você a caminhar comigo por esta área e pelos arredores de Motomachi, relembrar os fatos históricos que estão a ponto de cairem no esquecimento e dar a eles um novo alento de vida. Vem comigo!

Fundamento de Hiroshima

▲Motomachi, um pouco antes do bombardeio atômico. O nome da instalação militar foi incluida pelo Museu Memorial da Paz na foto aérea tomada pelo Exército dos Estados Unidos no dia 25 de julho de 1945 (recompilada pelo Arquivo Nacional dos EUA). Ponte Aioi no canto inferior esquerdo, considerado o alvo do lançamento da bomba atômica.
O terreno do Parque Central do bairro de Motomachi no centro de Hiroshima é o local onde a cidade planeja construir um estádio de futebol, no entanto, neste verão, durante as escavações, foram encontradas as ruínas da unidade do antigo exército japonês. As ruínas são do Batalhão de Soldados de Suporte Logístico (conhecido como 139o. Batalhão de Chugoku). O batalhão era responsável pelo transporte e se instalou na margem esquerda do Rio Ota até a manhã “daquele dia”. No dia 4 de setembro, a cidade começou a trabalhar para conservar parcialmente os paralelepípedos dos estábulos e realocá-los, mas têm surgido vozes que pedem a conservação total das ruínas, alegando que as ruínas são evidências de que Hiroshima foi uma “cidade militar” antes do bombardeio atômico.
Retrocedendo um pouco na história, o nome Motomachi, lugar onde alberga o Castelo de Hiroshima, está associado ao “fundamento de Hiroshima”. O bairro recebeu este nome em 1887, dois anos antes de Hiroshima ser elevado à categoria de cidade. Juntamente com a modernização, as instalações militares foram construídas uma atrás da outra. Haviam seis guarnições em todo o Japão, e em 1873, a 5ª. guarnição militar se instalou em Hiroshima, que posteriormente, em 1886, recebeu o nome de 5ª. Divisão. Em 1894, com o início da Guerra Sino-Japonesa, a capital do Japão foi brevemente transferida para Hiroshima e esta divisão se converteu no Quartel General Imperial, e temporariamente, a Dieta Imperial foi instalada no Campo de Treinamento Oeste, localizado próximo ao atual prédio do Departamento Municipal de Água. Neste mesmo ano, com a abertura da linha ferroviária Sanyo e a finalização do Porto de Ujina, Hiroshima se converteu numa base de envio de tropas do Japão.
O campo de treinamento oeste que se estendia para o lado sul do castelo era também um lugar de recreação dos cidadãos. Em 1929, para comemorar a fusão com sete bairros e vilas próximas, incluindo a vila de Ushita (atual Higashi-ku), foi realizada a Exposição Industrial Showa que durou 55 dias. Havia também um festival que acontecia anualmente, denominado “Hiroshima Shokon-sai”, era um grande evento da cidade, onde, inclusive se realizavam corridas de cavalos e de carros. Por volta de 1927 a 1928, de regresso temporário, um cidadão de Hiroshima que havia emigrado para o Canadá filmou o festival em filme de 16 mm, onde registrou o Salão de Exposições de Produtos da Província de Hiroshima (atual Cúpula da Bomba Atômica), localizado à margem esquerda do rio Motoyasu (um afluente do rio Ota), onde podemos ver a animação do evento e a majestosa aparência do salão. Posteriormente, seu filho, que vive atualmente no estado de Colúmbia Britânica (Canadá), doou o filme digitalizado ao Museu Memorial da Paz de Hiroshima.

 

▲ Café Brasil (no fundo) em Nakajima Honmachi, rodeado pelo rio Motoyasu (frente) e o rio Hon no delta de Hiroshima. Base de madeira da ponte Aioi (lado norte) foto tirada em 1938 por Wakaji Matsumoto, proprietário da “Loja de Fotos Hiroshima” quando a ponte foi removida.
O atual bairro de Nakajima-cho, bairro onde está localizado o Parque Memorial da Paz, é cercado pelos rios Hon e Motoyasu e antigamente se chamava Nakajima Hon-machi. Em 1882, foi construído aí um centro de distribuição, que se converteu 10 anos depois no principal centro comercial e cultural de Hiroshima. Em 1910, foi instalado, de forma permanente, o primeiro cinema da cidade, o “Salão Mundial”. Entrando no período Taisho (1912 – 1926), foi instalada a lanchonete “Café Brasil”, cuja matriz era em Kobe. Parece que a lanchonete tinha uma boa reputação graças ao atendimento dos garçons que usavam um avental branco e serviam bem a todos os clientes, mesmo aqueles que vinham tomar somente uma xícara de café (do livro Zoku Gansu Yokocho, (segunda edição) – Taro Susukita). A antiga estrada de Sanyo “Nakajima Hondori”, que atualmente atravessa o parque, era delicadamente iluminada por tradicionais luminárias japonesas Suzuranto (luminárias que têm a forma de lírio-dos-vales). Caminhando de Nakajima Hondori em direção norte até a ponte Aioi, se localizavam os primeiros estabelecimentos servidos por mulheres – restaurantes, pousadas, salões de bilhar, etc.
A ponte Aioi foi construída na intersecção dos rios Hon e Motoyasu em 1912, como uma ponte somente para bondes, sendo ampliada desde a seção central até Jisenji-no-hana (extremo norte do bairro Nakajima), recebendo uma forma única de “T”, muito rara no Japão. A ponte Aioi simbolizava a paisagem de Hiroshima, pois Hiroshima era conhecida como a “cidade das águas”, e tudo indica que foi o alvo do Exército dos Estados Unidos para o lançamento da bomba atômica.
No dia 6 de agosto de 1945, incluindo os bairros de Motomachi e Nakajima Honmachi, o delta de Hiroshima foi completamente destruído.

“Luz e sombras” na reconstrução de Hiroshima

Os seres humanos haviam sido aniquilados. O antigo campo militar japonês estava em ruínas. No entanto, depois do bombarbeio atômico, visando a reconstrução de Hiroshima, o bairro de Motomachi se converteu na base central da reconstrução.

 

▲Área central de Hiroshima, imediatamente depois da destruição, foto tirada por Shigeo Hayashi, um fotógrafo que acompanhou o antiga Equipe de Investigação de Desastres da Bomba Atômica do Ministério da Cultura, no dia 5 de outubro de 1945. Tomada da cobertura da antiga Câmara de Comércio de Hiroshima (4º. Andar). O sr. Hayashi (falecido em 2002) cedeu o filme negativo ao museu em vida.
O plano de reconstrução foi formulado em 1946. A cidade usaria a maior área do lado ocidental de Motomachi para a construção do parque, no entanto era mister a construção de moradias. As pessoas tinham perdido tudo, tendo ficado somente com a roupa do corpo. E, decorrente das desmobilizações das tropas e repatriações, houve um deslocamento em massa para a cidade de Hiroshima, que enfrentou uma abrumadora escassez de moradias. Nessa situação, no terreno que era utilizado pelo antigo exército, foram construídas casas de emergencia, onde a Corporação Habitacional começou a construir casebres, que apesar de terem telhados, não tinham tetos e a cidade de Hiroshima construiu precárias casas geminadas com 10 casas em cada construção. No ano seguinte, em 1947, a cidade abriu a Direção-geral de Reconstrução da Área Leste, que era uma organização municipal de reconstrução que trabalharia no local. No lado oeste, ficava a Direção-geral de Reconstrução de Hiroshima, que se localizava perto da atual Agência de Correios de Hiroshima.
Para estimular os sonhos das crianças, em Motomachi também foram construídos o Centro Cultural Infantil, inaugurado no dia 3 de maio de 1948 (administrado pela cidade desde 1950) e a Bibiloteca Municipal Infantil, inaugurado em dezembro de 1952. O primeiro foi construído com fundos angariados por professores e o segundo com os recursos enviados por nipo-americanos, cujos parentes haviam emigrado aos Estados Unidos antes da Guerra, pois Hiroshima foi a província que enviou o maior número de imigrantes antes da guerra. A “Sala de Exibição de Materiais Referentes à Bomba Atômica”, antecessora do atual Museu Memorial da Paz de Hiroshima, foi instalada numa sala do Centro Comunitário de Chuo no bairro de Motomachi em 1949. Em 1950, foi formado o time de beisebol, Hiroshima Carp, e desde então, os cidadãos começam a desejar um estádio que foi concluído em 1957, a sudeste do Centro Cultural Infantil, construído com doações feitas pela comunidade empresarial local.
Shinzo Hamai foi o primeiro prefeito eleito e liderou a reconstrução de Hiroshima. Em 1949, depois da promulgação de uma legislação especial, a “Lei de Construção da Cidade Memorial da Paz de Hiroshima”, que mais tarde foi descrita como o “pequeno espadachim”, começou uma construção em grande escala, incluindo a construção do Parque Memorial da Paz e do Boulevard da Paz que atravessa o delta de leste a oeste com uma largura de 100 metros.
A cidade bombardeada pega a onda do alto crescimento econômico e atrai uma avalanche de instalação de filiais e subsidiárias de grandes empresas. Em 1964, ano em que foram realizados os Jogos Olímpicos de Tóquio pela primeira vez, a população da cidade alcançou o nível de 500 mil habitantes. 80% deles eram “não hibakusha” (pessoas que não eram vítimas da bomba atômica). As distorsões e as contradições se aprofundavam. Na revisão da Lei de Atendimento Médico de Vítimas da Bomba Atômica em 1965, foi necessário promulgar uma resolução suplementar para “estabelecer medidas integrais de moradia às vítimas da bomba atômica”.
Publicações (tais como: “Aioi-dori” do escritor natural de Hiroshima, Ryuichi Fumizawa: “Quando abro o mapa da cidade de Hiroshima, há um lugar em branco no centro da cidade – a área à margem do rio chamada Aioi-dori”; “Neste canto do mundo” – gravado. Editado por Iwanami Shinsho /Tomoe Yamashiro, publicado em 1965), transmitem com bravura, vozes tristes de gente comum e de coreanos que seguiam com cicatrizes, que não poucas vezes eram ignoradas. Uma publicação mais recente – Yunagi no machi, publicado em 2003, de Fumiyo Kono, uma artista de mangá, que ilustrou vividamente os sentimentos depois de 10 anos do bombardeio de uma mulher solteira que vivia em Aioi-dori. Foi uma publicação muito comentada.

 

▲Aioi-dori em março de 1974. Foto tirada por Tokuichi Odan. Ao longo da margem esquerda do rio Ota (Honkawa), havia muitas casas em ruínas. Ao fundo, há um arranha-céu residencial em construção (cedida pela Divisão de Promoção Cultural da Cidade de Hiroshima)
Apesar do alto crescimento econômico que continuava, na área ao redor da margem esquerda do rio Ota, que compreendia o lado leste da ponte Aioi até o lado leste da ponte Misasa, numa extensão de cerca de 1,5 km, havia uma concentração de casas ilegais. As ruas eram estreitas e um pequeno fogo se transformava num grande incêndio. Segundo uma pesquisa conduzida por um investigador da Universidade Municipal de Osaka em 1968, investigou 892 casas ilegais e 3.015 pessoas que viviam em Motomachi. Dentre elas, 35,1% haviam sido bombardeadas, cerca de 50% eram diaristas, 20% estavam desempregadas e 13% eram casas compostas por pessoas de idade e seus netos.
O projeto de remodelação do governo nacional designou a parte ocidental de Motomachi como área de melhoramento que começou em 1969.Todas as 2.600 casas da área foram desalojadas para dar lugar à construção de arranha-céus residenciais com até 20 andares. Foram construídas 4.566 casas, incluindo os condomínios residenciais na área Chojuen no lado norte. Também foram construídos centros comerciais e centros comunitários. “Sem o melhoramento desta área o pósguerra de Hiroshima não teria fim”. O projeto de remodelação foi concluído em 1978 e um monumento com estas palavras foi instalado na área verde ao sul das ruínas do castelo de Hiroshima. No ano seguinte, em 1979, começou o revestimento de cerca de 880 metros da ponte Aioi, que foi concluído em 1984 como “talude ambiental de Motomachi”, que se tornou numa área de passeio e recreação.
Agora, a cidade de Hiroshima está planejando remodelar novamente a área de Motomachi. Com vistas a concluir a construção do estádio de futebol em 2024 , será instalada ao redor do estádio, uma área onde as pessoas possam desfrutar de restaurantes e de outras atividades ao ar livre. Sete instalações, incluindo a biblioteca municipal e outras localizadas no Parque Central, serão agrupadas ou realocadas a partir do próximo ano.
Motomachi é o lugar onde marca a história da área bombardeada de Hiroshima e reflete a aparência da cidade em transformação. Também é o lugar onde a perspectiva e a visão histórica dos cidadãos, que devem velar pela conservação destas memórias, são questionadas.

Hiroshima e Brasil

A emigração para o Brasil começou em 18 de junho de 1908, quando o navio “Kasato Maru” atracou no porto de Santos, frente ao Oceano Atlântico. Eram 781 pessoas a bordo, dentre elas, 42 eram procedentes de Hiroshima. Em fevereiro daquele ano, Japão e os Estados Unidos firmaram o “Acordo de Cavalheiros”, que proibia a emigração de japoneses ao território americano, exceto para as famílias de imigrantes que chamavam seus familiares e a reentrada de imigrantes permanentes.
“Passados uns dois a três anos, alguns emigrantes do Havaí regressaram ao Japão com dinheiro, foi quando pensamos: “Vamos tentar também”. Mas a história no Brasil não foi assim…”
Quem relata isso é Masayo Usui, uma emigrante de Hiroshima, que na época estava com 18 anos, recém casada que viajou com o marido no navio Kasato Maru. Em 1991, quando estava com 100 anos, recordou os dias que trabalhou por contrato numa plantação de café. Ela comenta: “Comia arroz molhado com água quente de manhã e à noite, bolinhos de trigo”. Parece que trabalhou sob uma severa vigilância. E para aprender português, trabalhou como empregada doméstica e foi batizada. Demorou quase 20 anos para conseguir uma vida tranquila com o marido e os filhos.
Hiroshima foi a província que mais enviou emigrantes ao Havaí e ao território continental dos Estados Unidos. Agora, no caso do Brasil na América do Sul, a maioria viajava em família. Dois anos depois da província de Hiroshima instalar a Cooperativa de Emigração, em 1929, viajaram 1.336 pessoas.
Em 1941, no início da Guerra entre Japão e Estados Unidos, o Brasil corta as relações diplomáticas com o Japão, e com isso cerca de 180 mil imigrantes japoneses que estavam no Brasil não tinham acesso às informações do Japão, e, mesmo após a Guerra, houve um confronto entre dois grupos “Kachigumi e Makegumi”.
A emigração depois da guerra, foi retomada em 1952, no ano seguinte à celebração do Tratado de Paz quando Japão retornava à comunidade internacional. Em 1956, o governador da província de Hiroshima, Hiroo Ohara, viajou a São Paulo e Paraná durante dois meses, apelando aos imigrantes que chamassem os irmãos que viviam nas áreas rurais do Japão e os órfãos que perderam seus pais na guerra para que “a provincia de Hiroshima pudesse superar a situação difícil que enfrentava”. Em 1950, pessoas influentes criaram a “Sociedade de Ajuda aos Órfãos da Bomba Atômica” e doaram suprimentos à oito instalações em Hiroshima. Depois da guerra, muitas pessoas de Hiroshima emigraram ao Brasil, e na época, havia cerca de 4.663 famílias, e hoje, estima-se que hajam aproximadamente 5.500 famílias” (História do Desenvolvimento e Lista de Hiroshima Kenjin do Brasil, compilado no Brasil em 1967).
No Brasil, Hiroshima é muito conhecido. O compositor, Vinícius de Moraes que escreveu “Garota de Ipanema”, um clássico da bossa nova, também é conhecido por escrever o poema “A Rosa de Hiroshima”, que foi lançado em música em 1973 sob o regime militar. Foi escrito em forma de poema e mais tarde em forma de música como uma forma de protesto contra a guerra. Na cidade de São Paulo, há uma escola estadual com o nome Cidade de Hiroshima e, todos os anos, no dia “6 de agosto” é realizado o Toro nagashi – uma cerimônia tradicional onde os participantes colocam lanternas de papel ao longo de um rio.
E por outro lado, o que fez Japão? O governo japonês outorgou o “visto de residência” aos nikkeis de segunda e terceira gerações sem restrições de emprego, na revisão de 1990 da Lei de Refúgio e Controle de Imigração que seguia com falta de mão de obra nas fábricas devido ao estouro da bolha econômica no Japão. Na região oeste do Japão, a província de Hiroshima recebeu a maior concentração de nikkeis que começaram a trabalhar em fábricas automobilísticas e outras. As crianças começaram a frequentar as escolas locais. Apesar das várias dificuldades que enfrentavam “os vizinhos da América do Sul”, parece que a sociedade local não demonstrou muito interesse.

 

No cinturão verde à margem esquerda do rio principal no bairro de Kakomachi (distrito de Naka-ku), próximo ao Salão Municipal de Intercâmbio Cultural, há um monumento gravado “Oração pela Paz – BRASIL” num granito preto. A placa em frente ao monumento diz: “Com a determinação de não repetir a tragédia de Hiroshima e com o desejo pela paz mundial e a paz infantil permanente…”. O monumento foi erguido pela Associação Kenjikai de Hiroshima em 1990, que convocou a todos para a construção, arrecadando doações de cerca de 5.000 pessoas, que incluiam desde alunos do ensino fundamental até aposentados no Brasil. Vá conferir, caminhando pelas margens do delta.
(Títulos omitidos)

 

▲Monumento memorial da paz erguido pelo Brasil. Localizado no cinturão verde à margem esquerda do rio Hon a uns 100 metros a jusante da ponte Heiwa Ohashi lado oeste, confeccionado em granito preto, com a forma da silhueta do Brasil.

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Masami Nishimoto / redator
Nasceu na cidade de Hiroshima em 1956. Foi repórter de empresa jornalística Chugoku Shinbum durante 41 anos e se retirou em 2021. É co-autor de “Imigração”, “Hiroshima Validado”, “70 anos do bombardeio atômico na cidade de Hiroshima”, publicado pela cidade, e outros.
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